Um momento descontraído, de lembranças e partilhas entre familiares e amigos íntimos de Darcy Ribeiro, no memorial batizado com o seu nome e conhecido popularmente como Beijódromo. Este foi o clima da programação preparada na tarde de quarta-feira (26) para celebrar o centenário de nascimento e o legado deixado pelo fundador da Universidade de Brasília (UnB), antropólogo, educador, pesquisador, político e escritor, uma importante personalidade brasileira, de facetas diversas. A atividade foi parte do evento Centenário Darcy Ribeiro aqui, promovido pelo Decanato de Extensão e Fundação Darcy Ribeiro (Fundar).
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Ucho Ribeiro, sobrinho de Darcy, com um papel às mãos que continha algumas memórias registradas, foi o maestro da cerimônia. Começou a contar suas histórias e, em seguida, pediu aos parentes para enriquecerem os relatos. “A primeira vez que eu vi Darcy foi por volta de 1959, 1960, quando ele foi a Montes Claros, e quando ele chegava era algo apoteótico, pois iam muitas pessoas lá em casa”, iniciou.
Ele lembrou que o antropólogo recebia muitas visitas, desde pessoas curiosas, apaixonadas por ele, até membros da classe ruralista da cidade do interior de Minas Gerais onde nasceu. Dentre as várias conversas que Darcy tinha com seus visitantes, Ucho presenciou uma sobre reforma na educação. “Ele me pegou, colocou no colo e falou: ‘esse menino aqui tem seis anos de idade e tem uma mãe pedagoga, um pai alfabetizado, uma casa, um teto, se alimenta três vezes por dia. Somente 20%, 30% da população tem isso. Então o que nós queremos é fazer a reforma para o restante na escola primária.’”
O pai de Ucho e irmão de Darcy, Mário Ribeiro, após o golpe que instaurou a ditadura militar e forçou o antropólogo a se exilar no Uruguai, viajava constantemente com a família e algum amigo para Montevidéu com o intuito de visitá-lo. “Papai tinha uma Kombi e ia aquele mundo de gente, quatro filhos, mamãe, o motorista, e papai sempre levava alguém para conversar com ele”, relatou. “Darcy pedia doce de marmelo e pequi, lembro que a gente levou um papagaio também, e tudo o que você pudesse imaginar tinha ali.”
Preso durante o regime militar, o idealizador da UnB foi mantido na antiga prisão da Ilha das Cobras, no Rio de Janeiro. André Ribeiro, sobrinho-neto de Darcy, contou como foi a experiência de visitar com o seu pai, Paulo Ribeiro, o lugar, que hoje é um parque ecológico: “Chegando lá, vi que a maré batia na prisão, virei para papai e falei: ‘papai, acho que tio Darcy deve ter roubado muito para ter ficado aqui, viu'”, brincou, arrancando risadas do público e dos familiares ali presentes.
Durante a luta contra o câncer que o vitimou, Darcy, mantinha-se ativo e alegre, tanto que isso causou uma certa confusão. “Depois de uma operação, chegou um cara lá e ele achava que o meu pai era o doente”, relembrou Ucho. Em meio a algumas risadas, ele continuou: “Papai estava tão ‘borocochô’ que meu tio estava com câncer, e Darcy conversava e brincava. Então chegaram para cumprimentar Darcy e meu pai, e acharam que era o contrário: ‘estou rezando pelo seu irmão, sei que ele está com câncer’. E meu tio na maior alegria do mundo.”
Jacy Ribeiro, cunhada de Darcy e mãe de Ucho, também contou algumas histórias. “Mário falava que havia dois tipos de alegria quando Darcy ia a Montes Claros: uma, quando ele chegava, e outra, muito maior, que era quando ele voltava”, começou Jacy. “Isso porque ele dava um trabalho danado. Ele queria comer todas as comidas da infância dele, queria as receitas, abraçar todo mundo e comer todas as frutas de Montes Claros”, relembrou.
“Lá vinha eu andando com ele por toda [a cidade de] Montes Claros, em todas as ruas, para ele lembrar de todas as casas, as casas que foram derrubadas e todas as árvores. Quando ele via que não tinha uma determinada árvore, se Mário estivesse por perto, ele falava: ‘Mário, Montes Claros está ficando careca! Você não pode deixar!’”, completou Jacy Ribeiro.
Ela relembrou também outro “trabalho” que o mineiro dava para ela. “Quando nós íamos ao Rio [de Janeiro] ou a Brasília visitá-lo, Darcy gostava que eu lesse os livros que ele estava escrevendo porque ele queria saber como uma pessoa ‘normalzinha’ como eu leria os livros dele”, contou.
“Tenho muita saudade de Darcy. Me lembro demais do período da ditadura, quando fomos diversas vezes a Montevidéu e ao Rio visitá-lo. E de Berta [antropóloga que foi casada com Darcy Ribeiro], que é pouco lembrada, mas que foi uma pessoa maravilhosa, companheira e competente”, completou Jacy.
AMIZADE MARCANTE – Após esta primeira rodada familiar, foi a vez de pessoas que conviveram com Darcy e amigos de longa data compartilharem com os presentes algumas histórias. Entre eles estavam o arquiteto José Ronaldo, o jornalista Leonel Kaz, as conselheiras da Fundar Lúcia Velloso e Maria José Latgé, e a antropóloga do Arquivo Nacional Maria Elizabeth Brêa.
José Ronaldo contou brevemente a história de quando conheceu Darcy Ribeiro, na época com 28 anos. “Eu tinha feito um projeto de reforma de uma área administrativa e o banco onde eu trabalhava ofereceu a área para o governo transitório”, começou. “Um dia, o engenheiro que tinha executado a obra chega para mim, com os olhos arregalados, dizendo que tinha conhecido Darcy, e que ele estava em uma sala que eu projetei e queria me conhecer.”
“Vai ser uma coisa espetacular”, pensou José Ronaldo. Ele conhecia as histórias e sabia que Darcy era uma das pessoas mais temidas pelo regime militar. Quando se encontraram, Darcy, então vice-governador do Rio de Janeiro, perguntou ao arquiteto se ele conhecia o Lelé, apelido de João Filgueiras, grande nome da arquitetura modernista. Ao responder que sim, José Ronaldo recebeu o convite especial para trabalhar com ele. “E aí começou a minha alegria incrível, uma mudança radical na minha vida”, compartilhou.
Assim como José Ronaldo, a antropóloga e pesquisadora Maria Elizabeth Brêa, chamada de Bethinha pelos amigos, tinha acabado de se formar quando conheceu Darcy Ribeiro e, segundo ela, o mineiro a convidou para trabalhar em “um projeto sobre os povos indígenas que ele queria retomar”. “Foi ele que me introduziu nesse mundo indígena”, mencionou a ex-diretora do Museu do Índio.
“Além da honra de ter trabalhado com Darcy e de ter aprendido muito com o professor quando eu ia à casa dele, eu tive a oportunidade de conhecer duas pessoas que foram fundamentais para mim: Carlos Moreira Neto e Berta Ribeiro, com quem trabalhei”, disse Bethinha. “Essas pessoas que eu conheci através do professor Darcy são o grande legado que eu levo”, completou.
Lúcia Velloso também contou sobre o momento em que conheceu o antropólogo. “Eu era uma pessoa recém-saída da prisão, e Darcy ficou muito impressionado com uma pessoa muito nova, antenada na vida”, relembrou. Ela se recordou das conversas com ele em tom professoral e que a considerava representante da sua geração.
Após ser convidada por ele para participar de um projeto de formação de professores, Lúcia Velloso foi trabalhar em uma escola. “Era um lixo. Ela tinha 3.200 alunos, toda caquética, arrebentada, não tinha água, o banheiro fedia, era um inferno”, comentou. “Quando Darcy foi inaugurar o projeto, eu o levei para o banheiro que não tinha nada e ele ficou em pânico.” Depois do choque de realidade, Darcy Ribeiro conseguiu verba para reformar a escola.
“Eu tenho seguido os conselhos de Darcy, batalhando pelas ideias dele até hoje”, completou a conselheira executiva da Fundação Darcy Ribeiro.
Bem-humorado, Leonel Kaz dividiu com a plateia como era a sua relação com Darcy. “Eu fui contratado para ser escravo”, brincou o jornalista. “Durante quatro anos da minha vida, eu fui escravo dele. Ele me ligava 3h30 dizendo: ‘meu irmãozinho, você está acordado?’. 'Não, eu estou dormindo’. ‘Então ótimo, eu quero te passar uma tarefa’. ‘Mas eu estou dormindo, Darcy’. ‘Não, mas só se dá trabalho a quem tem muito trabalho, prepara para mim e leva amanhã 8h esse texto'”, resgatou as conversas com ele nas madrugadas.
Leonel ressaltou a alta produtividade de Darcy Ribeiro e atribuiu isso ao fato de o antropólogo “gostar de se cercar de pessoas mais jovens”. “Ele tinha uma frase célebre, que nem libertas quae sera tamen [liberdade antes que tardia, traduzida do latim]. Era: o que eu quero é o que eu quero”, continuou o jornalista. Darcy tinha grandes sonhos, entre eles o de fazer o Festival Mundial da Juventude. “Tudo com ele era mundial, universal, planetário.”
No fim das contas, o festival não chegou a ver a luz do dia. Poucos dias antes de morrer, Darcy recebeu a visita de Leonel. “Ele estava em uma cama, muito abatido, desanimado, e eu fui por trás dele. Quando ele me viu, a única coisa que ele falou foi: ‘Leonel, você não fez o meu Festival Mundial da Juventude'. Essas foram as palavras finais de Darcy Ribeiro”, guardou na memória o amigo.
*estagiário em Jornalismo na Secom/UnB.